Entrevista - Deltan Dallagnol - “Vivemos num país sem muros”
O procurador do Ministério
Público Federal (MPF), Deltan Dallagnol, 35 anos, com doutorado em Harvard e
membro da Igreja Batista de Bacacheri, lidera uma força-tarefa da Operação Lava
Jato em Curitiba, PR. Nos últimos meses, ele tem ganhado espaço nas mídias
nacionais e ido a eventos de instituições -- inclusive, evangélicas -- para
divulgar a campanha “10 Medidas contra a Corrupção”, que quer endurecer as leis
contra a corrupção. Nesta entrevista, Deltan fala sobre a dimensão histórica da
corrupção no Brasil, a desonestidade nas igrejas evangélicas e como a sua fé
cristã o inspira a lutar por um país mais transparente e “sem muros”.
O
Brasil vive uma crise ética ou somos mais corruptos hoje do que fomos no
passado?
A corrupção não é um
problema de hoje, nem apenas do Brasil. O livro bíblico de Miqueias, escrito há
mais de quinhentos anos antes de Cristo, em seu capítulo 7, retrata a corrupção
em uma sociedade extremamente religiosa, a judaica, onde regras éticas eram
lei. Há diversos outros países do mundo em que a corrupção é endêmica. A isso se
soma que há, hoje, uma crise ética pós-moderna, numa sociedade em que você “é”
na medida em que você “tem”, patrimonialista, e na qual há uma relativização de
valores, o que, de modo combinado, pode estimular crimes de repercussão
econômica como a corrupção. Isso tudo não é peculiaridade do Brasil. O que
torna o Brasil um país com altos índices de corrupção é, em grande medida, a
impunidade. Precisamos ter, para além de freios éticos, freios jurídicos, os quais
infelizmente não existem em nosso
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Em
entrevista ao Estadão, o senhor disse que “a corrupção não é um problema de um
partido ou de um governo. Ela é sistêmica”. Por que então a imprensa, a
sociedade, o MPF ou a PF não apontaram tamanha corrupção nos governos
anteriores?
De fato, a corrupção no
Brasil é apartidária e vem de longa data. Padre Antônio Vieira, no Sermão do
Bom Ladrão, dizia que os governantes portugueses vinham ao Brasil não para
buscar o nosso bem, mas para buscar os nossos bens. A expressão “mar de lama”
foi cunhada na era Vargas para criticar escândalos de corrupção, e essa
expressão foi usada durante a ditadura e o período democrático para fazer
referência aos diversos casos de corrupção nos governos federal, estadual e
municipal. Como exemplos, temos situações envolvendo o político Ademar de
Barros antes e durante a ditadura, primeiro político a ser conhecido como “quem
rouba, mas faz”, o caso dos anões do orçamento no início da era democrática e o
propinoduto no estado do Rio de Janeiro na virada do milênio.
Houve, contudo,
especialmente nas duas últimas décadas, um processo de amadurecimento
democrático de nossa legislação e de nossas instituições, para um controle e
investigação mais efetivos do mau emprego de verbas públicas. Diversas leis
estabeleceram instrumentos de investigação necessários, como a lei de
interceptações telefônicas em 1996 e outras que permitiram e aperfeiçoaram a
colaboração premiada. Foram criados crimes para melhor proteger a sociedade,
como o de lavagem de dinheiro em 1998, aperfeiçoado em 2012, e o de organização
criminosa em 2013. As famosas “operações” da Polícia Federal, que tiveram por
objeto vários crimes além da corrupção, só surgiram na primeira década deste
milênio. O Ministério Público também se fortaleceu mais e mais desde a
Constituição de 1988, que o transformou em uma instituição forte de defesa da
sociedade. Tudo isso conduziu a investigações com melhores resultados, mas a punição
de réus do colarinho branco só existe, ainda, no papel. Ainda temos muito a
caminhar para que as punições não só sejam adequadas, mas também sejam
efetivamente aplicadas, bem como para termos instrumentos eficazes para
recuperar o dinheiro público desviado.
Como
sua formação cristã o ajudou a assumir as responsabilidades que tem assumido?
Decidi ingressar no
Ministério Público por me identificar com os valores defendidos por essa
instituição, que atua em serviço ao próximo. Dentre as suas funções estão a
proteção de idosos, crianças e adolescentes, a tutela do meio ambiente, a
defesa do consumidor, a fiscalização dos serviços essenciais, como os de saúde
e educação, bem como a garantia do regime democrático e da ordem jurídica. Na
área criminal, o Ministério Público busca efetivar a proteção que as leis
penais criam para a vida, o patrimônio e o bem-estar individual e social,
combatendo, por exemplo, a corrupção. Ingressei na carreira com o sonho de um
país mais justo. O que descobri é que vivemos no país da impunidade dos
colarinhos brancos, e isso me levou a buscar mudanças na legislação que são
necessárias para alcançarmos um país melhor, preservando, ao mesmo tempo, os
direitos das vítimas, da sociedade e dos réus. Embora os princípios e valores
cristãos influenciem a visão de mundo do cristão e nos incentivem a buscar
excelência no que fazemos, em amor à sociedade, minha atividade como
procurador, evidentemente, é laica e guiada pela Constituição e pelas leis. Em
outras palavras, o que eu faço é ditado pela lei, mas o grau de dedicação e
anseio por excelência no serviço à sociedade, sem dúvidas, têm uma inspiração
cristã.
O
fato de ser cristão evangélico tem gerado alguma dificuldade adicional ao seu
trabalho? Como lidar com as pressões e críticas que dizem respeito à sua fé?
Em geral, há um grande
respeito, no Brasil, pela fé individual. Tive algumas dificuldades com má
interpretação sobre uma abordagem que fiz passando pelas minhas convicções de
fé, mas foram bem pontuais. Um desses episódios me ajudou a melhorar minha forma
de comunicar. Tenho cuidado para que nenhuma colocação minha permita críticas
sobre o trabalho da força-tarefa da Lava Jato, composta por onze colegas de
diferentes fés, inclusive ateus. Para divulgar as dez medidas para a sociedade,
tenho ido não só a entidades cristãs, mas também a diversos outros locais, como
conselhos regionais de fiscalização profissional, universidades, congressos de
médicos e farmacêuticos, encontros de empresários e Rotary e mesmo a reuniões
de outras religiões.
Há
algumas décadas, ser evangélico era sinônimo de honestidade. Hoje, há muita
crítica sobre pastores e políticos evangélicos suspeitos de envolvimento com
corrupção. A igreja evangélica também vive uma crise ética?
Infelizmente, a
autenticidade da fé não tem selo de qualidade, não pode ser atestada por
documento. Comportamentos éticos e cristãos podem ser fingidos. Nem sempre
existe uma simetria entre a atitude externa e a atitude interior. A hipocrisia
de líderes religiosos foi o principal alvo das críticas que Jesus fez, o que
mostra que esse fenômeno não é novo. Infelizmente, pessoas com segundas
intenções, para obter riqueza ou poder, podem usar um discurso cristão para
manipular pessoas, inclusive cristãos autênticos. É natural que, com o
crescimento da população evangélica, cresçam as tentativas de manipulação e,
por uma questão de probabilidade, aumente o número de tentativas bem-sucedidas.
Que
medidas o senhor acha que as igrejas evangélicas deveriam tomar para
prevenir-se da corrupção ou da aparência de corrupção?
Creio que você se refere a
dois problemas distintos. O primeiro é o da efetiva corrupção de líderes.
Igrejas devem adotar práticas saudáveis, como aquelas que devem orientar
governos e empresas, de transparência e controle. Dinheiro da igreja e do líder
não devem se misturar. As contas e contratos das igrejas devem ser acessíveis
aos membros da igreja, ainda que por meio de uma comissão eleita, e auditados,
ainda que por amostragem. A riqueza do líder deve estar sujeita ao escrutínio
dos membros ou dessa comissão, assim como minha Declaração de Imposto de Renda
e as dos demais servidores públicos são enviadas anualmente para a
administração. Há alguns anos, antes de decidir em quem votaria, analisei como
cidadão a declaração de renda de um líder cristão do meu estado, a qual estava
disponível a todos na página do tribunal eleitoral. Nessa análise, constatei a
declaração de centenas de milhares de reais em espécie, o que é uma prática
habitual de sonegadores e lavadores de dinheiro e não faz qualquer sentido para
o cidadão honesto.
O segundo problema é o da
aparência da corrupção. O mau comportamento de determinados líderes evangélicos
pode afetar a imagem da denominação, o que pode se estender a outras igrejas. A
adoção de práticas claras de transparência e auditoria, como aquelas indicadas,
a publicidade do compromisso com essas práticas em sites, bem como o repúdio
público de práticas criminosas comprovadas de determinados líderes cristãos
podem contribuir com a construção de uma imagem positiva das igrejas.
Há
algum exemplo ou ensino bíblico especial que pode nos ajudar na luta contra a
corrupção?
O livro de Neemias, nesse
ponto, é inspirador. Ele retrata a história da reconstrução dos muros de
Jerusalém, os quais significavam a proteção da sociedade contra seus inimigos.
Hoje, vivemos num país sem muros, sem barreiras jurídicas, contra a corrupção e
a impunidade, as quais transitam livremente no meio de nós. Essa realidade foi
mudada, em Neemias, após oração e ação. O povo se uniu e os muros foram
reconstruídos. A questão que se coloca hoje à Igreja é: em que momento está a
Igreja? Não tenho dúvidas de que a Igreja tem em seu coração um desejo de
restauração e que já orou muito por um país mais justo. O que é necessário,
agora, é dar um passo adiante, para adotar ações concretas que possam trazer
mudanças sobre as estruturas de injustiça que criam um ambiente favorável à
corrupção. Precisamos, como sociedade, construir muros.
A campanha do Ministério
Público Federal “10 Medidas contra a Corrupção” quer alcançar 1,5 milhão de
assinaturas para que a proposta seja votada no Congresso Nacional, nos moldes
da Lei da Ficha Limpa. Do que trata a
campanha e o que o faz acreditar que o MPF vai conseguir?
As “10 Medidas contra a Corrupção” constituem um conjunto de
mudanças na lei que têm três objetivos centrais: evitar que a corrupção
aconteça (prevenção); alcançar a punição adequada dos corruptos e a recuperação
dos valores desviados; e dar um basta na impunidade, porque corrupção e
impunidade caminham de mãos dadas. Essas
medidas são explicadas em detalhes no site. Diversas
igrejas e líderes cristãos apoiam as medidas. Para que elas se tornem
realidade, como a Lei da Ficha Limpa, é necessário que sejam levadas ao
Congresso Nacional com pelo menos 1,5 milhão de assinaturas.
Tenho consciência de que é
impossível que o Ministério Público, sozinho, faça isso. É algo que só dará
certo se a sociedade agir, como tem agido. Vivemos uma janela de oportunidade
para mudanças, porque nossa população nunca esteve tão sensível ao problema da
corrupção e aos males que causa. Por isso, centenas de entidades por todo o
país assumiram essa campanha, que não é mais algo apenas do Ministério Público,
mas do povo brasileiro. Ao levar isso ao Congresso, o que a sociedade fará é se
assumir como autora de sua história. Será uma declaração pública de
inconformismo e de desejo de mudanças concretas que possam nos trazer um país
mais justo, com menos corrupção e menos impunidade.
O
senhor é muito jovem (35 anos). Como os jovens -- especificamente os cristãos
-- podem se envolver na luta contra a corrupção?
Obrigado pelo “jovem”
(risadas). Todos podemos orar por um país melhor. Quando o assunto é o cuidado
com órfãos e idosos necessitados, contudo, nós não apenas oramos por eles. Nós
também contribuímos financeiramente com casas lares e de repouso, e muitas
igrejas instalaram e mantêm essas casas. Quando o assunto é corrupção, orar é
importante, mas precisamos agir. Jovens podem contribuir de diversas maneiras,
por exemplo, participando de observatórios sociais e ONGs que controlam contas
públicas, como a Transparência Internacional e a Contas Abertas. Hoje, jovens
podem dar uma contribuição muito especial, divulgando a campanha “10 Medidas
contra a Corrupção” em redes sociais e colhendo assinaturas em suas escolas ou
universidades, ambientes de trabalho e em locais com grande aglomeração de
pessoas, como calçadões, eventos e jogos de futebol.
Alguns
já o chamaram de “herói nacional”. O senhor se considera um herói?
Não podemos perder a visão
de contexto, de que somos apenas parte de uma engrenagem. Além disso, toda
visibilidade é passageira, é como o vento. Hoje está aqui, amanhã, ali. O
importante é buscarmos converter a visibilidade temporária que o caso traz em
algo positivo, perene, em favor da sociedade. Todos nós temos um poder para
promover essa mudança, e com esse poder vem uma responsabilidade. Assim como
aqueles que trabalham na Lava Jato e outros especialistas nas matérias tinham
uma possibilidade de contribuir com o desenho de medidas contra a corrupção a
partir de sua experiência, o líder e o jovem cristão podem, hoje, dar uma
contribuição fundamental para que essas medidas sejam aprovadas.
Fonte: Revista Ultimato
setembro-outubro 2015