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segunda-feira, 6 de abril de 2015

Islã: religião de paz?

Alderi Souza de Matos


Os atentados terroristas verificados em Paris no início de janeiro de 2015, nos quais três extremistas islâmicos mataram dezessete pessoas, entre elas cinco cartunistas do periódico satírico “Charlie Hebdo”, suscitaram um intenso debate sobre a liberdade de expressão. Autoridades e articulistas se apressaram em isentar a religião islâmica de qualquer responsabilidade pelo ocorrido, buscando-se muitas explicações alternativas para as ações dos terroristas. Tanto líderes muçulmanos quanto não muçulmanos voltaram a insistir que o islamismo é uma religião pacífica. Os que expressaram opinião contrária foram tachados de islamofóbicos.

Porém, divergindo da maioria politicamente correta, alguns observadores têm questionado se o islã é de fato uma religião tolerante. Quando se olha para a história, verifica-se que nos primeiros séculos o movimento de Maomé, ao lado de seu caráter militante e conquistador, tornou-se uma importante força intelectual e cultural. Os antigos califados foram centros de cultivo das mais diferentes áreas do saber. A Espanha islâmica destacou-se por sua magnífica arquitetura e por suas contribuições na matemática, na medicina e na filosofia. Nomes como Ibn Rushd (Averróis), Ibn Sina (Avicena), al-Kindi, al-Farabi e outros estão entre os grandes intelectuais do período áureo islâmico (750-1250). Mais importante, em muitas das regiões conquistadas, os muçulmanos se mostraram bastante respeitosos de outros grupos religiosos, havendo entre eles uma convivência relativamente pacífica.

Todavia, em séculos mais recentes, por uma série de fatores ainda não suficientemente explicados, o islamismo tem experimentado forte declínio intelectual e ideológico. Na maioria dos países em que predomina, tornou-se uma religião fortemente conservadora e tradicionalista, controladora de todos os aspectos da vida e da sociedade, avessa à aceitação da diversidade religiosa e de cosmovisões alternativas. Essas atitudes foram exacerbadas durante o século 20 com o colonialismo europeu, a criação do Estado de Israel e um sentimento de inferioridade e injustiça em relação ao Ocidente cristão.

Não se pode negar que existem muitos muçulmanos de mentalidade aberta, respeitosos dos que pensam de modo diferente. Todavia, na atualidade a atitude predominante se volta para a direção oposta. Existem muitas coisas no islã que são passíveis de diferentes entendimentos, mas hoje prevalecem as interpretações rígidas e radicais. Um exemplo disso são as problemáticas representações visuais de Maomé. Não há nada no livro sagrado, o Corão, que proíba tais desenhos. No entanto, segundo a tradição islâmica (“hadith”), o profeta teria se oposto a essa prática para que não fosse idolatrado. Ao mesmo tempo, sabe-se que em certos contextos artistas islâmicos retrataram o seu fundador. Porém, essa questão se tornou tão essencial para os muçulmanos atuais, que tais representações são tidas como blasfêmia, como um supremo insulto que merece vingança, até mesmo a morte.

Quando se investiga a atitude do islã em relação à tolerância e à liberdade religiosa não basta olhar para os muçulmanos que vivem no Ocidente. Sendo grupos minoritários, eles são plenamente favoráveis a uma ampla liberdade, que muito os beneficia. Por outro lado, os defensores do islã dizem que o comportamento das turbas sanguinárias e de grupos extremistas como o Estado Islâmico e Boko Haram é totalmente excepcional, não fazendo justiça à corrente majoritária dessa religião. Porém, há uma terceira via de investigação, frequentemente esquecida pelos líderes e analistas ocidentais: a conduta dos países islâmicos em relação à liberdade religiosa. Aqui não se trata de movimentos periféricos e radicais, mas da maioria islâmica em sua atitude padrão diante de outros grupos.

A Missão Portas Abertas, que monitora a intolerância religiosa ao redor do mundo, informa que cerca de 65 nações praticam alguma forma de repressão contra os cristãos, com diferentes graus de intensidade. A maior parte desses países violadores da dignidade humana no âmbito religioso (e em outras áreas) é composta de nações islâmicas. O melhor exemplo é a Arábia Saudita, o berço e centro principal do islã. 

Nesse país, 97% da população é muçulmana, sendo a maioria sunita de linha salafista, ultraconservadora. Os poucos cristãos são trabalhadores estrangeiros. A liberdade religiosa é severamente restringida: nenhuma outra religião pode ser praticada, templos não islâmicos são proibidos, mesmo as devoções privadas são vedadas e a polícia religiosa investiga as casas de cristãos. A conversão de muçulmanos é passível de pena de morte. O sistema penal, baseado na lei islâmica (“sharia”), prescreve castigos brutais como decapitação, apedrejamento, açoites e amputação de membros. O país não aceita a Declaração Universal dos Direitos Humanos. Sintomaticamente, o governo saudita alega o caráter islâmico especial do reino como justificativa para uma ordem social e política diferente.

Esse péssimo precedente se espalha por todo o mundo muçulmano, especialmente as chamadas repúblicas islâmicas, verdadeiros estados totalitários conhecidos por suas amplas e graves violações dos mais elementares direitos humanos. Mesmo nações outrora tolerantes, como Jordânia, Turquia e Indonésia, têm experimentado um recrudescimento da perseguição contra as minorias religiosas. Multiplicam-se em muitos lugares horríveis massacres de cristãos, como no Sudão, no Egito e, mais recentemente, na Nigéria e no Níger, sob o olhar complacente dos governantes ocidentais. Essa desumanidade é um dos fenômenos mais chocantes do mundo contemporâneo e torna insustentáveis as alegações de que o islamismo é uma religião de paz e harmonia.

No dia 12 de setembro de 2006, o papa Bento XVI fez um corajoso discurso na Universidade de Ratisbona, na Alemanha, em defesa da liberdade religiosa, no qual conclamou os muçulmanos a condenarem a violência como meio de impor a fé. As reações negativas foram intensas, tanto de líderes islâmicos quanto de ocidentais que se recusam a denunciar uma dolorosa realidade. Usando argumentos que a cada dia parecem mais convincentes, o pontífice apelou aos seguidores de Maomé para buscarem, dentro de seus próprios recursos espirituais e intelectuais, argumentos islâmicos que defendam a tolerância religiosa e a distinção entre autoridade religiosa e autoridade política.

A história cristã não está livre de tristes manifestações de violência como as cruzadas, a inquisição, as perseguições contra os judeus e a escravidão. Todavia, com o passar do tempo a cristandade evoluiu e hoje, de modo coerente com os ensinos de Jesus, defende plenamente a liberdade, a democracia e os direitos da pessoa humana. Esse é o grande desafio para o islã nesta grande encruzilhada da história, para o seu próprio bem-estar futuro e para a segurança e paz da humanidade.

• Alderi Souza de Matos é doutor em história da igreja pela Universidade de Boston e professor no Centro Presbiteriano de Pós-Graduação Andrew Jumper. É autor de “Erasmo Braga, o Protestantismo e a Sociedade Brasileira”, A Caminhada Cristã na História e “Fundamentos da Teologia Histórica”. Outros artigos de sua autoria estão disponíveis neste site.


Fonte: Revista Ultimato março/abril 2015

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