Um ano antes de morrer, Freud, já octogenário, fez mais uma vez sua pública
profissão de fé na não-existência de Deus numa carta dirigida ao historiador
Charles Singer: “Jamais em minha vida particular ou nos meus escritos eu
escondi o fato de que sou descrente de ‘cabo a rabo’”. Ele se referia a si
mesmo, aparentemente sem escrúpulos, como um “médico sem deus”, ou um
“materialista”, um “ateu”, um “descrente” e um “infiel”.
Nascido e educado na religião judaica e casado com uma mulher que também era
neta de rabino, Freud, quando criança, devia cantar ou recitar os dois únicos
salmos iguais do Saltério, que começam com a declaração: “Diz o tolo em seu
coração: ‘Deus não existe’” (Sl 14.1; 53.1). Contudo, em seu primeiro ensaio
sobre a visão do mundo religioso (Ações obsessivas e práticas religiosas), dá a
entender que tolo é aquele que tem necessidade de fé, a pessoa que não avança
em seus estudos.
No dia 6 de maio de 1891, o
pai de Sigmund Freud, Jacob Freud, lhe deu de presente uma velha Bíblia na qual
o filho havia lido quando criança, com a seguinte dedicatória: “Você enxergou
neste livro a visão do Todo-Poderoso, você ouviu de boa vontade, você o
praticou e tentou voar alto nas asas do Espírito Santo. Desde então, eu
preservei a mesma Bíblia. Agora, no seu 35º aniversário, eu tirei o pó dela e a
estou enviando a você, como prova de amor do seu velho pai”.1
Embora citasse frequentemente
a Bíblia, tanto o Antigo como o Novo Testamento, e tivesse familiaridade com a
Palavra de Deus, Freud afirmava que as Escrituras “estão cheias de
contradições, revisões e falsificações”.2
Além da influência judaica,
Freud recebeu influência cristã através da ama-seca “feia, bastante velha”, que
lhe falava do Deus Altíssimo e do inferno e o levava à missa em Freiberg, na
Morávia, onde ele nasceu, naquela época com uma população de 4 a 5 mil
habitantes, quase todos católicos.
Sob o prisma da psicanálise,
Freud dizia que Deus não nos criou à sua imagem, mas fomos nós quem criamos
Deus à imagem dos nossos pais. Às vezes, ele ia longe demais: “Não tenho temor
nenhum do Todo-Poderoso. Se nós viermos a nos encontrar um dia, provavelmente
terei mais queixas contra Ele, do que Ele poderia ter de mim”.3
A frase mais infeliz de Freud
foi pronunciada quando ele era estudante universitário em Viena: “Não pretendo
me entregar”.4
O futuro médico referia-se à
sua disposição de resistir a qualquer influência que o levasse a crer em Deus.
E ele conseguiu. Mais ou menos na mesma ocasião, Freud fez dois cursos de
filosofia; um deles foi sobre a existência de Deus. Não foi fácil escapar das
aulas nem da influência de Franz Brentano, ex-padre, professor de filosofia na
Universidade de Viena, “um homem notável, um crente, um teólogo, um camarada
danado de esperto, de fato um gênio”. Freud chegou a vacilar e cogitou a
possibilidade de tornar-se crente. Foi quando fez uma quase-confissão: “É
desnecessário dizer que sou um ateu somente por necessidade, e sou honesto o
suficiente para confessar que sou incapaz de refutar os argumentos dele
[Brentano]; entretanto, não tenho nenhuma intenção de me entregar tão rápida ou
completamente”.5
Teria o Espírito Santo
advertido Freud com as mesmas palavras ditas a Saulo na entrada de Damasco:
“Resistir ao aguilhão só lhe trará dor” (At 26.14)?
O fato é que Freud ofereceu
forte resistência a todas as oportunidades que lhe surgiram na vida para deixar
de ser ateu. Ele passou de largo por aquilo que Immanuel Kant chama de “placas
de sinalização” — o céu estrelado acima e a lei moral dentro de nós, tudo
apontando com clareza inconfundível para Deus.
Parece que Freud conhecia o
famoso livro A Imitação de Cristo, atribuído ao teólogo alemão Tomás de
Kempis, nascido por volta de 1380. Também não provocou mudança alguma o
encontro pessoal que ele teve com o filósofo e psicólogo americano William
James, um ateu convertido ao cristianismo, em sua única visita aos Estados
Unidos, em 1909. A essa altura, James estava com 67 anos e acabara de publicar O
Significado da Verdade, e Freud tinha 53 anos. O nova-iorquino William James
era especialista em teologia propriamente dita (natureza e existência de Deus)
e na imortalidade da alma. O livro favorito de Freud não era outro senão o
clássico Paraíso Perdido, o maior poema épico da língua inglesa, leitura
obrigatória dos puritanos e dos não-conformistas da Inglaterra por dois
séculos, escrito por John Milton em 1667.
A influência cristã mais duradoura, mais didática e mais amável que Freud
recebeu na vida foi pela correspondência com o pastor reformado Oskar Pfister,
doutor em filosofia e teologia, residente em Zurique, na Suíça. Por longos 30
anos (de 1909 a 1939), Freud e Pfister (este 17 anos mais moço que aquele)
trocaram cartas entre si.6
Um dos poemas prediletos de Freud era Lázaro, do poeta alemão Heinrich Heine,
quase 60 anos mais velho do que o médico de Viena. Armand Nicholi, autor de Deus
em Questão — C.S. Lewis e Freud debatem Deus, amor, sexo e o sentido da vida (Editora
Ultimato, 2005), supõe que a atração de Freud pela história da ressurreição de
Lázaro reflita o seu próprio desejo de permanência.
Que Freud morreu declarando-se ateu às 3 horas da madrugada do dia 23 de
setembro de 1939, ninguém tem dúvida. O mesmo não se pode dizer se
interiormente ele tinha absoluta convicção da não-existência de uma
Inteligência superior. À semelhança de outros ateus, ele costumava citar o nome
de Deus em suas cartas: “Eu passei nos meus exames com a ajuda de Deus”; “Se
Deus quiser”; “A ciência parece demandar a existência de Deus”; “Pela graça de
Deus” etc.
Além do mais, Freud fez
questão de inaugurar a sua clínica particular especializada em neuropatologia
na Páscoa de 1886, quando tinha 30 anos, a mesma idade com que Jesus Cristo
iniciou o seu ministério (Lc 3.23). Essa escolha seria sinal de respeito por
aquele dia de profundo significado religioso ou refletia desafio e desrespeito
por Jesus?
Notas
1. Deus em Questão, p. 24.
2. Idem, p. 47.
3. Idem, p. 218.
4. Idem, p. 222.
5. Idem, p. 26.
6. Cartas entre Freud e Pfsiter. Viçosa, MG: Editora Ultimato,
1998.
Quando o ateu esquece que é ateu
No início de setembro de 2005,
na cidade de Franca, SP, um pai sofrido e de posição social modesta declarou à
Folha de São Paulo: “Não creio mais em Deus. Mesmo assim, oro todas as noites
pedindo que Deus devolva a vida de meu filho ou o leve embora de uma vez”.
Sigmund Freud cometeu o mesmo
“cochilo” doutrinário, mais de uma vez.
Numa de suas cartas ao pastor
Oskar Pfister, Freud chama o amigo de “caro homem de Deus” (4/10/1909).
O psiquiatra Armand M. Nicholi
Jr. teve acesso às muitas cartas de Freud e achou nelas palavras e frases como:
“o bom Senhor”; “entregar ao Senhor”; “por na mão do Senhor”; “até depois da
ressureição”; “o julgamento divino”; “a vontade de Deus”; “Deus altíssimo”; “se
algum dia nos encontrarmos nas alturas”; “no outro mundo”; “minha oração
secreta” (Deus em Questão, p. 60).
Parece que não há ateu que não esqueça de vez em quando que é ateu. C.S. Lewis,
outro erudito, conta que, mesmo sustentando a não-existência de Deus, ele
“ficava com raiva pelo fato de ele não existir [...] e por ter criado o mundo”
(Deus em Questão, p. 61).
Não é fácil ser ateu. As coisas complicam quando surge um problema, como o que
Freud confessa a Pfister na carta de 14 de dezembro de 1911: “Fiquei encalhado
diversas pocinhas no meu estudo da psicogênese da religião e com as poucas
forças que tenho atualmente não posso desencalhar” (Cartas entre Freud e
Pfister, p. 73).
Diariamente boquiaberto
O Sol é como um noivo
Que sai de seu aposento
E se lança em sua carreira
Com a alegria de um herói
É uma bola de fogo
Que sai toda molhada
Do outro lado do Atlântico
Se eu estiver no Rio de Janeiro
É uma bola de fogo
Que sai toda suada
Do outro lado dos Andes
Se eu estiver em Valparaíso
Do mar, o Sol vai para os montes
Dos montes, o Sol vai para o mar
Ele sai de uma extremidade
E vai para a outra extremidade
Na manhã do dia seguinte
O Sol sai outra vez de seu aposento
E percorre outra vez a distância toda
E eu fico outra vez boquiaberto!
Créditos: Revista Ultimato - Novembro-Dezembro 2005.
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